Elena Ferrante, pseudônimo de uma escritora italiana cuja identidade permanece em segredo, vem atraindo inúmeros leitores com seus romances. A "Febre Ferrante" é um fenômeno global, tendo seu auge com a Tetralogia Napolitana, uma série de livros sobre duas amigas que inspirou a primeira série em língua não inglesa da HBO.
A tetralogia de Ferrante é cheia de camadas importantíssimas. A autora trata do patriarcado, do machismo, da desigualdade social, das violências familiares e conjugais, de uma Itália em transformação pós-guerra e de muitos outros aspectos históricos, sociais e culturais com uma delicadeza e profundidade admiráveis.
A singularidade de Ferrante é irresistível e abre espaços para muitas análises e discussões, porém o que me interessa aqui não é discutir a genialidade e complexidade dessa brilhante autora, mas fazer um convite, para que, com a ajuda dessa obra, possamos explorar o que há de mais humano em nós e em nossas relações. Lenu e Lila, as protagonistas da Tetralogia Napolitana, encarnam uma relação rica e profunda, na qual a amizade se transforma em um motor para o desejo de ambas.
Na imagem das personagens é possível revisitarmos nossa própria infância, evocarmos sentimentos como amor, ciúmes, inveja, competitividade, raiva, desejo de transformação e muitos outros. Durante a leitura o que mais me chamou a atenção foi a mobilização dos desejos das amigas e como esses se relacionam com a amizade que se constrói.
Desde o início da narrativa, quando Lenu conhece Lila, o que a mantém próxima da amiga é a fantasia de que, ao estar ao lado da fascinante Lila, ela poderia viver uma vida diferente daquela a que estava destinada, personificada na figura de sua mãe e das outras mulheres do bairro. Dessa forma, desde a infância, Lila torna-se um espelho para Lenu, refletindo a possibilidade de desafiar a Lei e as condições impostas pelo bairro periférico de Nápoles.
A postura mais contida, o medo e as inseguranças de Lenu se contrapõem, desde a infância, à postura decidida de Lila. “Eu fazia coisas na vida, mas o fazia sem convicção, fiz
muitas coisas em minha vida, mas jamais convicta, sempre me senti um tanto descolada de minhas próprias ações. Ao contrário, Lila desde pequena tinha (...) a marca da decisão absoluta (…)".
A genialidade, a coragem e a inteligência de Lila, serviram de suporte privilegiado para que Lenu pudesse enxergar uma outra possibilidade de vida. Assim, durante toda infância e adolescência, Lenu se propôs a fazer tudo que a amiga fazia, mesmo que sem convicção.
Esse espelhamento, ao longo de toda a trama, manifesta-se não apenas no desejo que uma nutre pela outra, mas também revela a falta, condição essencial para que o desejo continue existindo. Ambas almejam ocupar lugares aparentemente inalcançáveis: Lila, com seu brilho natural, transforma-se no objeto de desejo de Lenu, enquanto o sucesso acadêmico e social de Lenu torna-se aquilo que Lila deseja e simultaneamente rejeita.
Lila se configura, para Lenu, como o Outro inatingível e fascinante, levando-a a tentar desesperadamente compreender, igualar-se ou até superar sua amiga. Esses movimentos foram tão determinantes que Lenu nunca deixou de estudar. Ela dedicou-se incansavelmente a tirar boas notas em Latim e Grego, deixou o bairro, frequentou a Universidade de Pisa, casou-se com um homem de família rica e publicou livros, realizando a trajetória que imaginava que Lila teria feito se tivesse tido a mesma oportunidade.
No entanto, mesmo alcançando esses objetivos, Lenu nunca se sentiu completamente satisfeita. Sua trajetória revela o que a psicanálise lacaniana afirma sobre o desejo: ele é sempre marcado pela falta, algo que nunca pode ser totalmente preenchido. Por mais que Lenu buscasse ocupar um lugar de destaque e conquistar o sucesso que parecia impossível em sua infância, a presença de Lila sempre estava ali, como um fantasma, para marcar a sua insuficiência.
Esse ciclo contínuo entre desejo e falta é o que move Lenu e Lila ao longo da narrativa. A amizade entre as duas torna-se um espelho distorcido, em que uma reflete na outra aquilo que lhe falta, alimentando um desejo que nunca se apaga. O sucesso de Lenu é comparado constantemente ao brilho natural e à inteligência de Lila, que, por sua vez, deseja a liberdade e o reconhecimento que a vida de Lenu lhe proporciona. Essa dança entre as duas
personagens configura um jogo de espelhamentos e deslocamentos, em que o objeto desejado parece sempre estar um passo à frente, inatingível.
O desejo de Lenu por uma vida diferente, simbolizado por seu fascínio por Lila, é o que a move a se afastar do destino de ser como sua mãe ou outras mulheres de seu bairro. Lila, com sua força enigmática, representa o "outro desejante", aquele que parece saber algo a mais, que escapa às normas e convenções impostas pelas leis do mundo ao redor. A presença de Lila desafia esses limites, oferecendo a Lenu a possibilidade de ir além e de se reinventar.
Contudo, o desejo é também permeado pela ambivalência. Conforme Lenu avança em sua vida, ela se vê, paradoxalmente, presa à imagem de Lila. Essa dualidade entre admiração e inveja revela que não desejamos apenas o que queremos, mas também o que acreditamos que o Outro deseja. Assim, Lenu não só deseja ser como Lila, mas quer ser o que Lila deseje ou admire nela. Esse enredo nos confronta com a impossibilidade de um desejo pleno, pois o objeto do desejo é sempre uma construção fantasmática, algo que está sempre além do alcance.
Ao final, "A Amiga Genial" expõe o desejo como uma força estruturante e, ao mesmo tempo, desconcertante na vida de Lenu e Lila. Elas personificam o que há de mais humano em nós: a busca constante por algo que nunca é plenamente alcançável, o espelhamento com o Outro que nos faz confrontar nossas próprias lacunas e insuficiências. É nessa incompletude que a narrativa encontra sua força, mostrando que o desejo não apenas nos move, mas também revela as fragilidades e sombras da condição humana.
Ao explorar as nuances dessa amizade, Ferrante nos oferece um retrato complexo do desejo - um desejo que transcende o simples querer e nos leva a refletir sobre o que nos constitui como sujeitos, sempre em relação com o Outro e suas faltas, sempre em busca do inatingível.
Leticia Bruderhausen Ghosn - Estudante de Psicologia na UFTM - Universidade Federal do Triângulo Mineiro
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